quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Uma Noite

Recomeçou a escrever. Ou melhor, a tentar escrever. A folha permanecia em branco há horas e ameaçava tornar aquela noite igual a tantas outras. Tão branca como as páginas que se revelava capaz de preencher.

Nem sempre fora assim. Tempos houveram em que escrevia a uma velocidade estonteante, em que as palavras quase acompanhavam o fluxo do seu pensamento e as páginas não paravam de se avolumar, plenas de vida, de histórias fantásticas, de pensamentos emocionantes, de vidas invejáveis. Agora, o branco do papel atormentava-o, feria-lhe os olhos, cegava-lhe o espírito.

E não conseguia dormir.

Fez mais uma tentativa e sentou-se em frente ao papel. Demorou-se em pensamentos, ideias e argumentos. Espremeu a sua vida, a dos outros, a de ninguém... nada, nem uma linha, um título, uma palavra que fosse.

Levantou-se e foi para a rua. Talvez o ar fresco o ajudasse, talvez o contacto com a vida, com as pessoas libertasse algo de dentro de si. Sentia-se em pânico. Já tinha ouvido falar nos bloqueios que afectam os escritores mas sempre se sentiu imune a esse tipo de afecções. Pois é... puro engano...

Começou a caminhar, atento a tudo e a todos. Viu cenas triviais, pessoas indiferentes, casais apaixonados, crianças perdidas, tristes, alegres, a brincar, cães, pedintes. Deixou-se ir, sem rumo, sem destino, sem pressa. Ainda confiava que algo iria surgir, que o seu talento se iria manifestar a qualquer momento.

Sentiu odores, viu cores, ouviu sons, gritos, risos e choros. As suas mãos tocaram tudo o que puderam, o chão, a terra, o rosto daquela menina, a mão de uma anciã, o pelo de um cão tinhoso...

Desolado, desesperado, retomou o caminho para casa. De nada lhe tinha adiantado todo aquele tempo, todo aquele esforço. A sua cabeça permanecia vazia, incapaz de articular um pensamento ou uma frase.

Subiu os degraus, meteu a chave na porta e entrou. Dirigiu-se à sua mesa e sentou-se. Foi então que se apercebeu: tudo estava diferente. Em vez da pilha de papel vazio que tinha abandonado em desespero algumas horas antes, tinha agora à sua frente três conjuntos de folhas, meticulosamente ordenadas e repletas de palavras. Olhou em redor, assustado. Quem teria entrado em sua casa durante a sua ausência? Reparou, depois, que nada mais tinha sido mexido, que nada tinha desaparecido, que tudo estava na mesma.

Mais calmo, sentou-se e começou a ler. Os textos que tinha à sua frente eram belíssimos! De facto, nunca vira nada igual. Ao longo de mais de cem páginas, comoveu-se, riu, sorriu, chorou, encantou-se com tudo o que leu. Aquelas palavras, aqueles textos falavam de tudo, do amor, do mundo, da vida... até da morte... E falavam sempre com clareza, com verdade e com toda a convicção, daquela que resulta da experiência, da dor e da alegria intensamente sentidas. Era impossível ficar indiferente a tudo o que lera. E, na realidade, a leitura daquelas palavras, escritas por mãos invisíveis, preparava-se para mudar toda a sua vida.

Tudo era agora mais claro, evidente, urgente e inadiável. Percebeu, subitamente, que lhe restava pouco tempo e que tinha milhares de coisas por fazer, por dizer, por viver.

Saltou da cadeira, pegou no casaco e correu, de novo, para a rua. Sentia-se estranho, vivo, assustado, nem sabia por onde começar, sabia apenas que tinha de recuperar o tempo perdido.

A imagem dela, sempre presente, surgira agora com mais intensidade. Amava-a desde que a conhecera, um dia, por acaso. Desde esse dia, em que o amor nascera, ele não tinha parado de aumentar. Pensava nela a toda a hora e, de mil maneiras diferentes, já lhe tinha demostrado tudo o que sentia. Contudo, nunca tinha sido capaz de o dizer, olhos nos olhos, talvez por cobardia, talvez pelo medo da resposta, talvez pelo pânico de perder a sua preciosa companhia. E era tão bom estar ao pé dela...

Mas a leitura daquele ensaio sobre a vida fizera-o entender que nada justificava ele esconder um sentimento tão intenso. Ela tinha de o ouvir da boca dele. E depois... logo se veria... Ela, sem o saber já lhe tinha dado tanto, tantos momentos tão bons, tão fortes, tão especiais, que, no mínimo, merecia ouvir aquela palavra que, ao longo de uma vida, poucas vezes se ouve e poucas vezes se sente.

No dia seguinte, telefonou-lhe e convidou-a para jantar. Ele adorava aqueles longos jantares em que, com ela à sua frente, falavam sobre tudo e ela o aquecia com a sua voz, o seu sorriso, o seu olhar. As horas e os pratos passavam sem darem por eles e, no final, ficava a antecipação do próximo encontro... sempre cheio de saudades...

Chegado o dia, foi buscá-la. Ela, linda como sempre, ele... sem palavras...

Chegaram ao restaurante e começaram a conversar. Ele estava nervoso. De repente, quase sem pensar, disparou:

- Amo-te.

A resposta não o surpreendeu: o amor que sentia por ela tinha um só caminho. Ela não o amava...

A esperança de uma vida nova, encorajada por tudo aquilo que lera, estava agora perdida. Levou-a a casa, despediu-se e, lentamente, tomou o caminho para a sua. Sentou-se em frente à sua secretária e olhou para os textos sem autor. Reparou, então, que, no entusiasmo que aquelas palavras lhe tinham causado, não lera a última página. Ainda combalido e muito menos interessado, pegou nela e começou a lê-la. No fundo, não tinha muito que ler. Contudo, a mensagem era clara, inequívoca e profundamente cruel: ali podia ler, preto no branco, o seguinte:

"Obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"

Despiu-se e deitou-se.

Apagou as luzes.

Durante alguns minutos fitou o tecto, iluminado pelo luar. Viu o rosto dela. E, com uma lágrima rolando-lhe pelo rosto, adormeceu.

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