quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Tu já não gostas mais de mim

Dizia isto com lágrimas nos olhos, ou, pelo menos, com tristeza no olhar ou na voz ou na forma como deixava cair os braços, em sinal de entrega, de rendição, de abandono.

Também a sua alma chorava nestes momentos, mas isso só ele conseguia captar. Era um choro diferente, sem sinais exteriores, sem manifestações somáticas, mas nem por isso menos evidente para ele que a conhecia tão bem, que era capaz de a radiografar com o olhar, de a analisar com os ouvidos, de a dissecar com a atenção que dedicava a cada gesto seu e a cada partícula do seu ser.

De facto, movimentava-se com grande à vontade pelos meandros da sua personalidade densa mas inconsistente, conhecia bem os contornos do seu pensamento e era capaz de antecipar as diferentes encruzilhadas a que ele conduzia. Mais difícil era, depois, saber optar por um dos múltiplos caminhos que cada linha de raciocínio proporcionava, alguns tentadores, outros tenebrosos, outros indefinidos, todos povoados por uma lógica própria, a dela, e que ele intuitivamente dominava e acompanhava. Desde sempre.

- É verdade, não é? Já não gostas de mim?

As razões para semelhante questão (afirmação?) podiam variar, dependendo do momento e das circunstâncias em que eram pronunciadas. Podiam brotar da sua insegurança inata, visceral, um dos traços mais constantes do seu carácter, podiam nascer de uma zanga ou briga por grandes (raras) ou pequenos (tantas) motivos, por vezes serviam como mero estímulo quase infantil para obter o efeito pretendido - não, amor, é claro que te amo muito - ou, então, era a própria pergunta uma declaração de amor, amor expresso na preocupação pelo que ele sentia, assim traduzindo os seus afectos, tantos, por ele.

Também a sua reacção era diversa, na justa medida da variedade de motivos que presidiam à interrogação. Podia ficar triste quando captava nela aquela mágoa infinita que tantas vezes a assaltava e que ele, impotente, não podia mitigar e onde tendia a entrar e permanecer até ambos dela se libertarem. Podia sorrir e responder-lhe com toda a mímica do carinho, muito mais eloquente que qualquer palavra que pudesse emitir: um beijo, um abraço, uma carícia e pronto, a resposta estava dada, sem espaço para dúvidas, sem hipótese de contra-interrogatório. Provas apresentadas, réu ilibado, caso encerrado.

A opção pelo verbo era sempre a mais aberta a múltiplas opções, qual teste à americana: - a sério?, - mas gostas como gostavas antes?, - porque dizes isso com essa voz?, - não sei porquê, sinto que já gostaste mais… etc., etc., etc. E então, o cenário estava montado para uma longa peça, uma novela em vários episódios, com um desfecho totalmente imprevisível. Apagam-se as luzes, correm os panos, silêncio por favor, o espectáculo vai começar.

- Amor, tu ainda gostas de mim?

A doçura da expressão, a transformação da voz, a melancolia do olhar (olhos bem abertos, brilho semi-apagado, sobrancelhas arqueadas, quase desenhando o ponto de interrogação que, de facto, pretendem exprimir), a pose do seu corpo no momento em que lança esta incerteza não real a que as palavras tentam dar existência, toda esta busca daquilo que já tinha encontrado depois de tanto tempo e que, por isso mesmo, temia perder, tornavam-na ainda mais indefesa e frágil do que ela já aparentava ser e, na realidade, era.

Os anos foram passando, incertos como sempre acontece, inconstantes como convém, felizmente imprevisíveis e aquela dúvida ia e vinha, visitava-a regularmente e ela fazia questão em partilhá-lha com ele.

Ainda ontem podiamos ouvi-la a dizer:

- Anjo, tu já não gostas mais de mim…
Ele, como sempre acontecera, respondeu-lhe como o momento solicitava, como o seu humor permitia, como o amor deles exigia:

- Meu amor, gostar de ti nunca foi opção para mim.

Virou-se e voou para outra núvem. Ajoelhou-se e colheu alguns fragmentos, compôs um ramo fofo e alvo e ofereceu-lho, completando:

- Gosto de ti porque sim. Não há mais nem menos para o quanto eu gosto de ti. Anda, vamos dar um passeio.

Entrelaçaram as mãos, abriram as asas e perderam-se no meio daquele azul sem fim, igual ao amor que os unia e que nunca lhes tinha dado outra opção se não a de ficarem para sempre juntos.

Embora ela continuasse a duvidar…

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