sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Olha para mim

Permanecia com os olhos fechados sentindo nas pálpebras o calor tórrido do sol tentando forçar a entrada, procurando, a todo o custo, atingi-lo, feri-lo, cegá-lo, como se ele fosse culpado por todos os males do Mundo, como se fosse ele o responsável por o Sol, o famoso Astro-Rei, nunca ter sido mais na sua longa vida do que uma bola incandescente, a vomitar fogo a toda a hora, qual dragão permanentemente indisposto após uma indigesta refeição, feita de homens, de cavaleiros e de feiticeiros com pretensões a heróis, feita de todos aqueles que, ao longo de séculos, o desafiaram e fracassaram.

Franzia os olhos, cerrava as pálpebras, contraía a fronte não para se defender do Sol, mas para tentar focar aquela imagem que, no fundo dos seus sonhos, se vislumbrava, enevoada, difusa mas irresistível. O seu esforço era, por vezes, premiado com uma nitidez quase fotográfica, mas, quando estava prestes a descortinar a natureza daquele objecto (seria um objecto?…), os seus olhos cediam ao esforço e tudo ficava, de novo, desfocado e imperceptível.

Manteve-se nesta luta inconsciente, semi-adormecido, durante largos minutos. As imagens iam e vinham, foscas e depois mais bem desenhadas, sombrias e logo a seguir mais luminosas. Contudo, nunca conseguiu, sequer, reter uma forma ou uma cor que lhe permitissem dar um nome ao protagonista do seu sonho (estaria, de facto, a dormir?).

Sentou-se com um princípio de dor de cabeça. Pegou no seu livro e, rapidamente, se esqueceu daquele bizarro e cansativo episódio de miopia onírica, mergulhado na leitura, no prazer que ela lhe proporcionava, nos mundos que lhe trazia e nos quais ele embarcava com um prazer quase infantil. Adorava a leitura e a escrita e, delas, apenas lamentava o pouco tempo que lhes dedicava. Sempre se desculpou perante elas, perante si próprio, com a falta de tempo, mas, pressentia, essa sempre tinha sido uma falsa razão…
Mal sabia ele que aquele sonho, aquela miragem ondulante, aquele fantasma sem nome iria visitá-lo muitas mais vezes. Sim, aquilo tinha sido somente o princípio…

Três meses tinham passado e, agora, sentia-se às portas da loucura. Aquela sombra passageira, inocente, insignificante tinha tomado conta das suas noites e dos seus dias. Despertava-o durante o sono, provocando-o, troçando dele, evoluindo da sua indefinição cinzenta até uma certeza quase decifrável, mas nunca lhe permitindo essa paz, esse consolo, esse descanso.

Durante o dia, o mesmo. No trabalho, na rua, no carro, de olhos abertos ou fechados, dava por si a semicerrá-los, à procura do detalhe que lhe faltava, procurando surpreender aquele esboço de algo que não sabia o que era e, assim, capturá-lo na sua retina e no seu cérebro e depois colocá-lo, qual troféu de caça, nas paredes da sua memória, lado a lado com as suas recordações, as boas e as más, as felizes e as tristes, as desejadas e as que, de tão fundo cravadas, já desistira de tentar remover, pois, quanto mais tentava, mais as retinha e mais abalava as outras, as que o embalavam na doce brisa do seu passado, arriscando-se a danificá-las, a quebrá-las, a retirar-lhes aquele brilho resplandecente pelo qual sempre tinha zelado.

Em vão. O fantasma permanecia, assombrava a sua vida, tirava-lhe a vida sem ele se aperceber, de tão obcecado que estava em arrancar-lhe a máscara, em olhá-lo, olhos nos olhos, e poder dizer-lhe: Sei quem és! Agora, podes ir. E não voltes mais!! Mas nada. Ele continuava roendo-lhe a alma, atormentando o seu coração, cavando o abismo donde ele parecia já não conseguir, nem querer, sair.

Aquela presença foi-se tornando, quase sem dar por isso, indispensável, insuportavelmente necessária. Dava por si a procurá-la, a chamar por aquele rascunho de sonho, a contrair o seu rosto, em caretas patéticas, indiferente a tudo e a todos, num esforço desesperado de convocar aquela alma penada, de lhe sentir o cheiro, de lhe tocar no rosto, de a ver em toda sua verdade.

Deixou de trabalhar, comia e bebia o mínimo que o seu corpo pedia, vivia para aquela sombra, alimentando-se dela, confundindo-se nela, dia e noite, noite e dia, numa vida que já não era vida, que já não merecia esse nome, porque não está vivo quem desiste desta maneira, tão brutal, tão indigna, de lutar, de ter, de ser. Ele tinha realmente capitulado. Trocara tudo o que tinha por uma imagem sem foco, sem corpo, abdicara de tudo pela teimosia irracional de a vencer, de a trazer para o mundo dos nomes, das coisas, do visível, do real.

Um dia viu-a. Por um instante, o seu esforço de concentração, então apuradíssimo, trouxe-a para o seu mundo. Tinha suspendido a respiração, retesado todos os músculos do corpo, fechado os olhos e, com eles bem cerrados, tinha exigido aos seus cristalinos, aos seus músculos ciliares, um derradeiro esforço, uma entrega sobrenatural, como se deles, daquele momento, dependesse a sua vida, a dos outros, a do Universo. Devagar, lentamente, foi-a puxando para si, como quem resgata uma vida suspensa no abismo, como quem estica a mão para tocar em Deus. Tinha o corpo coberto de suor, a fronte sulcada por vincos profundos, trémulos e húmidos, os punhos fechados, unhas cravadas na carne, nós dos dedos roxos, sufocados, pedindo ar.

Lentamente, ela veio. Não consegue precisar o momento em que cegou, em que os seus olhos se renderam a meses de trabalhos forçados, a exercícios para os quais nunca foram preparados, a tentar ver o invisível. Na ansiedade da imagem que se formava, nem disso se apercebeu, da sua cegueira, subitamente instalada e irreversível, não percebeu que o que finalmente via não era com os seus olhos, mas com o seu coração, como diria o principezinho de Saint-Exupéry.

Ela sorriu para ele e ele sorriu todo e ambos ficaram nesse sorriso, finalmente em paz com o mundo e com a vida.

Respirou fundo, ergueu-se devagar, tacteando a porta que deixara de ver e saiu para a rua, negra como a noite. Caminhou devagar por aquela escuridão, iluminado pela luz que tinha dentro de si, que, após tanto tempo, tinha sido capaz de acender.

Nunca ninguém entendeu como ele cegara. E nunca ninguém percebeu porque ele, cego, só e sem nada, sorria, sorria sempre.

Respirava devagar e o seu rosto, prematuramente envelhecido pelas batalhas que travara em busca de um sonho disforme, estava agora tranquilo, repousado, apenas percorrido por uma ou outra lágrima ocasional que descia dos olhos inertes, o afagava com uma carícia lenta, quente e salgada e se lançava nos ares, regando o chão por onde ele caminhava. Lágrimas de felicidade, de uma felicidade sem fim, sem explicação, sem remédio.

Nunca antes tinha visto tão bem, pensava ele. - Tu és muito bonita, sabias? Ainda bem que te encontrei. Ficas comigo para sempre?

- Para toda a vida…

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