sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Do azul ao castanho

Esfregou os olhos e recomeçou a contemplá-la. Não podia acreditar no que estava a acontecer!

Aquela luz tinha sido emitida a uma velocidade fisicamente impossível, com uma força esmagadora, com um poder de penetração verdadeiramente balístico. Era imparável e tinha de fazer sérios estragos.

A luz partiu do azul, atravessou os ares e, escassos milésimos de segundos depois, atingiu o seu indefeso alvo castanho, estilhaçando-o em mil pedaços.

A onda de impacto gerada pelo choque propagou-se em círculos concêntricos que fizeram abalar o Planeta e que ecoaram nos Céus. Se os anjos estivessem a tomar chá, ver-se-iam em apuros para não o entornar... Ainda hoje esse abalo é tema de conversa celestial...

Ao longo do seu trajecto, a luz cumpriu as leis da física e decompôs-se nas suas diferentes cores. E, em cada uma delas, determinou efeitos surpreendentes.

O azul, a primeira cor a surgir e a revelar-se, quase que foi fatal: trazia consigo a paz dos horizontes sem fim, a força indomável dos oceanos, a frescura dos rios, a música inexplicável das estrelas e a suavidade das nascentes. Tudo era possível naquele azul: respirar fundo e adormecer, arfar de excitação e ficar acordado noites sem fim, rir de felicidade, chorar de emoção, desejar absorvê-lo de bem perto, procurar a distância para captar o seu efeito em redor, querer tocá-lo, querer prová-lo com outros sentidos que não a visão. Era um azul que tudo revelava e tudo escondia, que dava e tirava, que prometia e se resguardava. Era um azul discreto e provocante, ingénuo e sensual, alegre e triste, que encerrava em si um mistério a pedir para ser revelado mas a ocultar todas as chaves para nele entrar.

O castanho começou a absorver tudo isso e logo se apercebou do que se estava a passar. Mas foi tudo demasiado rápido e ele nem um gesto foi capaz de esboçar.

À medida que o azul clareava, revelava toda a sua beleza. Antes de se transformar em verde quase ficou transparente e, nesse momento, o castanho conseguiu entrar dentro daquele azul, captar a sua essência, desvendar os seus segredos, decifrar a sua natureza. Em poucos instantes, descobriu a sua doçura, a sua paz interior, a sua solidão, a sua ternura, a sua inadiável necessidade de amor.

Depois veio o verde e, com ele, a carícia da sombra das árvores, o murmúrio da brisa entre os seus ramos, o aroma da terra ao amanhecer, o perfume das rosas e dos frutos, a melodia das folhas a morrerem no chão.

Não tardou muito para que viesse o amarelo e ele sentiu-se aquecer por dentro, como se aquela luz lhe tivesse trazido o sol para junto de si, iluminando a escuridão da sua vida, espantando todas as sombras que a habitavam e derretendo o gelo que se tinha vindo a instalar.

Depois o laranja, ainda mais quente, e, logo a seguir, o vermelho. Foi aí que o incêndio deflagrou, completamente descontrolado, foi nesse momento que as chamas se atiçaram, se elevaram aos céus e o cercaram, sem deixar qualquer saída possível. O fogo devorou tudo o que estava em redor, consumiu os restos do passado, purificou o presente e ditou o futuro. E ele, qual Fénix, renasceu das suas próprias cinzas. Foi aí que ele sentiu que estava completamente apaixonado. E foi nesse instante que ele soube o seu destino.

Tudo isto durou uma fracção de tempo e nesse tempo ele viveu toda uma vida, uma aventura inesquecível, uma viagem feita de cores, aromas e, sobretudo, de afectos. Enquanto a luz jorrava do azul ele, submisso, aceitou aquele baptismo de luz e amor e quedou-se a seus pés, de olhos fechados, braços caídos, sorriso mal contido.

Quando se conseguiu recompor, o castanho ergueu-se e procurou retribuir a dádiva maravilhosa que tinha recebido do azul. Sem saber como o fazer, sem saber como igualar semelhante oferta, esboçou um sorriso e deixou que o azul captasse a extensão dos efeitos causados, abrindo-lhe o seu coração e expondo as feridas agora abertas.

O azul não percebeu logo o que tinha causado, não pressentiu o terramoto que tinha desencadeado, não imaginou que tinha iniciado a erupção de um vulcão, há muito adormecido.

Quando o castanho, indefeso perante aquela tempestade imensa, conseguiu revelar o que lhe tinha sucedido, o azul caíu em si e deixou-se envolver pela branda ressonância da sua própria explosão. Recebeu no coração a brisa das ondas que provocou, o calor do fogo que atiçou e a ternura rendida que o castanho lhe dirigiu. E não mais o largou.

“Adoro os teus olhos azuis, meu amor. Desde o primeiro dia.” - diz-lhe ele com frequência e com ternura...

“E eu, os teus, tão castanhos...” - responde ela sorrindo e, com esse sorriso, quase o fazendo chorar...

O Triângulo

As portas da ambulância abriram-se e a maca entrou. A pobre mulher estava num estado lastimável. As sirenes começaram a tocar e as rodas chiaram sobre o pavimento molhado e frio.

Era, sem dúvida, um dos piores Invernos dos últimos anos.

O impacto com o carro quase que lhe tinha separado por completo a alma do corpo e, na ambulância e, depois, no Hospital lutava-se para que isso não acontecesse.

Oxigénio, sangue, fármacos, tudo foi usado para impedir a dissolução total.

Em vão...

Lentamente, as últimas amarras quebraram-se e a alma partiu. O corpo nem pôde acordar para lhe dizer adeus. Ficou deitado, sozinho e frio.

Frio como aquele dia de Inverno em que, no leito da estrada, um carro o traiu e levou a sua amante...

Tango

Percorria o salão com um sorriso nos lábios ao som daquele tango.

Sentia-se nas nuvens e rodopiava com altivez e orgulho como o tango exigia, como ela merecia.

Com ela nos seus braços, sentia-se a voar, indiferente a quem com eles compartilhava aquele espaço quente, pleno de vida e de paixão.

Agarrado a ela, fixando os olhos nos dela, perscrutando-lhe a alma, encostando o rosto no dela, dançavam "La Cumparsita", "Loca de amor", "Por una cabeza", e emanavam uma aura de felicidade que a todos ofuscava.

Ele apertava-a muito, desculpando-se com a paixão do tango mas, no fundo, agarrava-a como se tivesse medo de a perder.

Dançava sem parar, louco de amor e de paixão e nada o fazia abrandar. Tudo o resto tinha deixado de fazer sentido e aquela música, aquela dança, aquela mulher confundiam-se com a sua vida.

O calor do seu corpo, a doçura do seu sabor eram tudo o que ele queria sentir e viver e, ao dançar vivia, ao senti-la junto a si vivia, ela era a sua vida.

Passou a dançar de olhos fechados, mãos nas mãos, rosto no rosto, corpos entrelaçados para, assim, a sentir melhor, mais próxima, mais sua.

Um dia abriu os olhos e ela não estava lá. Estava tão enebriado, tão apaixonado que nem se apercebera que já não a tinha junto a si e que o calor que sentia, o perfume que o envolvia eram apenas memórias gravadas na sua alma e no seu coração.

Olhou à sua volta e… nada. Nenhum sinal dela. Estava só naquele salão há tão pouco repleto de vida e onde agora mais ninguém se encontrava. Sentiu um frio intenso percorrer-lhe o corpo.

Deixou cair os braços como quem desiste de viver, como quem se rende face ao destino e dirigiu-se para a porta. Olhou uma última vez para trás, apagou a luz e saiu.

Ainda ouviu, pela última vez, as palavras de Carlos Gardel: " Yo no quiero que nadie a mi me diga que de tu dulce vida tu ya me has arrancado"

Olha para mim

Permanecia com os olhos fechados sentindo nas pálpebras o calor tórrido do sol tentando forçar a entrada, procurando, a todo o custo, atingi-lo, feri-lo, cegá-lo, como se ele fosse culpado por todos os males do Mundo, como se fosse ele o responsável por o Sol, o famoso Astro-Rei, nunca ter sido mais na sua longa vida do que uma bola incandescente, a vomitar fogo a toda a hora, qual dragão permanentemente indisposto após uma indigesta refeição, feita de homens, de cavaleiros e de feiticeiros com pretensões a heróis, feita de todos aqueles que, ao longo de séculos, o desafiaram e fracassaram.

Franzia os olhos, cerrava as pálpebras, contraía a fronte não para se defender do Sol, mas para tentar focar aquela imagem que, no fundo dos seus sonhos, se vislumbrava, enevoada, difusa mas irresistível. O seu esforço era, por vezes, premiado com uma nitidez quase fotográfica, mas, quando estava prestes a descortinar a natureza daquele objecto (seria um objecto?…), os seus olhos cediam ao esforço e tudo ficava, de novo, desfocado e imperceptível.

Manteve-se nesta luta inconsciente, semi-adormecido, durante largos minutos. As imagens iam e vinham, foscas e depois mais bem desenhadas, sombrias e logo a seguir mais luminosas. Contudo, nunca conseguiu, sequer, reter uma forma ou uma cor que lhe permitissem dar um nome ao protagonista do seu sonho (estaria, de facto, a dormir?).

Sentou-se com um princípio de dor de cabeça. Pegou no seu livro e, rapidamente, se esqueceu daquele bizarro e cansativo episódio de miopia onírica, mergulhado na leitura, no prazer que ela lhe proporcionava, nos mundos que lhe trazia e nos quais ele embarcava com um prazer quase infantil. Adorava a leitura e a escrita e, delas, apenas lamentava o pouco tempo que lhes dedicava. Sempre se desculpou perante elas, perante si próprio, com a falta de tempo, mas, pressentia, essa sempre tinha sido uma falsa razão…
Mal sabia ele que aquele sonho, aquela miragem ondulante, aquele fantasma sem nome iria visitá-lo muitas mais vezes. Sim, aquilo tinha sido somente o princípio…

Três meses tinham passado e, agora, sentia-se às portas da loucura. Aquela sombra passageira, inocente, insignificante tinha tomado conta das suas noites e dos seus dias. Despertava-o durante o sono, provocando-o, troçando dele, evoluindo da sua indefinição cinzenta até uma certeza quase decifrável, mas nunca lhe permitindo essa paz, esse consolo, esse descanso.

Durante o dia, o mesmo. No trabalho, na rua, no carro, de olhos abertos ou fechados, dava por si a semicerrá-los, à procura do detalhe que lhe faltava, procurando surpreender aquele esboço de algo que não sabia o que era e, assim, capturá-lo na sua retina e no seu cérebro e depois colocá-lo, qual troféu de caça, nas paredes da sua memória, lado a lado com as suas recordações, as boas e as más, as felizes e as tristes, as desejadas e as que, de tão fundo cravadas, já desistira de tentar remover, pois, quanto mais tentava, mais as retinha e mais abalava as outras, as que o embalavam na doce brisa do seu passado, arriscando-se a danificá-las, a quebrá-las, a retirar-lhes aquele brilho resplandecente pelo qual sempre tinha zelado.

Em vão. O fantasma permanecia, assombrava a sua vida, tirava-lhe a vida sem ele se aperceber, de tão obcecado que estava em arrancar-lhe a máscara, em olhá-lo, olhos nos olhos, e poder dizer-lhe: Sei quem és! Agora, podes ir. E não voltes mais!! Mas nada. Ele continuava roendo-lhe a alma, atormentando o seu coração, cavando o abismo donde ele parecia já não conseguir, nem querer, sair.

Aquela presença foi-se tornando, quase sem dar por isso, indispensável, insuportavelmente necessária. Dava por si a procurá-la, a chamar por aquele rascunho de sonho, a contrair o seu rosto, em caretas patéticas, indiferente a tudo e a todos, num esforço desesperado de convocar aquela alma penada, de lhe sentir o cheiro, de lhe tocar no rosto, de a ver em toda sua verdade.

Deixou de trabalhar, comia e bebia o mínimo que o seu corpo pedia, vivia para aquela sombra, alimentando-se dela, confundindo-se nela, dia e noite, noite e dia, numa vida que já não era vida, que já não merecia esse nome, porque não está vivo quem desiste desta maneira, tão brutal, tão indigna, de lutar, de ter, de ser. Ele tinha realmente capitulado. Trocara tudo o que tinha por uma imagem sem foco, sem corpo, abdicara de tudo pela teimosia irracional de a vencer, de a trazer para o mundo dos nomes, das coisas, do visível, do real.

Um dia viu-a. Por um instante, o seu esforço de concentração, então apuradíssimo, trouxe-a para o seu mundo. Tinha suspendido a respiração, retesado todos os músculos do corpo, fechado os olhos e, com eles bem cerrados, tinha exigido aos seus cristalinos, aos seus músculos ciliares, um derradeiro esforço, uma entrega sobrenatural, como se deles, daquele momento, dependesse a sua vida, a dos outros, a do Universo. Devagar, lentamente, foi-a puxando para si, como quem resgata uma vida suspensa no abismo, como quem estica a mão para tocar em Deus. Tinha o corpo coberto de suor, a fronte sulcada por vincos profundos, trémulos e húmidos, os punhos fechados, unhas cravadas na carne, nós dos dedos roxos, sufocados, pedindo ar.

Lentamente, ela veio. Não consegue precisar o momento em que cegou, em que os seus olhos se renderam a meses de trabalhos forçados, a exercícios para os quais nunca foram preparados, a tentar ver o invisível. Na ansiedade da imagem que se formava, nem disso se apercebeu, da sua cegueira, subitamente instalada e irreversível, não percebeu que o que finalmente via não era com os seus olhos, mas com o seu coração, como diria o principezinho de Saint-Exupéry.

Ela sorriu para ele e ele sorriu todo e ambos ficaram nesse sorriso, finalmente em paz com o mundo e com a vida.

Respirou fundo, ergueu-se devagar, tacteando a porta que deixara de ver e saiu para a rua, negra como a noite. Caminhou devagar por aquela escuridão, iluminado pela luz que tinha dentro de si, que, após tanto tempo, tinha sido capaz de acender.

Nunca ninguém entendeu como ele cegara. E nunca ninguém percebeu porque ele, cego, só e sem nada, sorria, sorria sempre.

Respirava devagar e o seu rosto, prematuramente envelhecido pelas batalhas que travara em busca de um sonho disforme, estava agora tranquilo, repousado, apenas percorrido por uma ou outra lágrima ocasional que descia dos olhos inertes, o afagava com uma carícia lenta, quente e salgada e se lançava nos ares, regando o chão por onde ele caminhava. Lágrimas de felicidade, de uma felicidade sem fim, sem explicação, sem remédio.

Nunca antes tinha visto tão bem, pensava ele. - Tu és muito bonita, sabias? Ainda bem que te encontrei. Ficas comigo para sempre?

- Para toda a vida…