segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Sem dor

Ele nunca conheceu a dor.

Não, não estou a falar em sentido figurado, é assim mesmo: ele nunca conheceu a dor.

Foi assim desde que nasceu. Nem chorou quando lhe deram aquela palmada tradicional no traseiro...

Após alguma investigação os médicos descobriram o problema e fizeram o diagnóstico: Insensibilidade Congénita à Dor. Era isso que ele tinha. Foi com um ar consternado que os pais receberam dos médicos a tremenda lista de cuidados que tinham de ter para evitar que ele se magoasse. E foi com lágrimas nos olhos que souberam que, mesmo assim, seria difícil evitar uma fatalidade...

No entanto, não desistiram. Deixaram de trabalhar, gastaram tudo o que tinham na remodelação da sua casa, revestindo-a com materiais esponjosos especialmente concebidos, eliminaram todos os objectos potencialmente perigosos, enfim, tudo fizeram para que o seu único filho pudesse brincar e crescer sem que nada lhe acontecesse.

Durante dezoito anos viveram os três nesta estufa, sem problemas de maior. Quando, regularmente, o médico os visitava ficava absolutamente espantado e não poupava elogios ao enlevo com que os pais tinham sabido proteger o seu filho.

Até que um dia o pior aconteceu. Ele gostava muito de estar à janela. Coitado, pouco mais podia fazer... e foi assim que a viu passar. Ficou de cabeça perdida... irremediavelmente... pudera, ela era perfeita.

Abriu a janela e chamou-a. Ela virou-se, sorriu, e dirigiu-se para ele. Ele apresentou-se e, durante horas, falaram e falaram... estava completamente apaixonado...

Durante várias semanas assim foi, até que ele se encheu de coragem e declarou o seu amor. Ela não lhe mentiu e disse-lhe que, embora gostasse dele, não o amava... e retirou-se...
Ele ficou... estranho... nada lhe doía, como sempre, mas algo estava errado. Levou a mão ao peito e não sentiu o bater do seu coração. Tinha sido ferido de morte. E poucos segundos depois caiu...

Quando os pais chegaram, não podiam acreditar...o seu filho...como podia ter acontecido?...como?!...COMO??!!

Aproximaram-se dele... nada, nenhuma marca e, no rosto, a mesma expressão serena de sempre, de quem nunca sentiu a dor...

Pois é...

Foi, talvez, o primeiro homem a morrer de amor sem sofrer... sem sentir dor...

Bela consolação...

A Viagem

O dedo indicador contraiu-se nervosa e inexoravelmente. Até que a raiva explodiu e o projéctil iniciou a sua viagem.

Cruzou os ares impulsionado pelo ódio.

O quarto arco costal esquerdo não ofereceu grande resistência. Fragmentado em mil estilhaços cedeu passagem ao viajante.

O coração era o próximo do itinerário: pulsátil, vibrante, morno...tenro.

Em seguida o pulmão: borbulhante, crepitante...fácil.

Alguns músculos e, de novo, o ar.

Enfraquecido e ensanguentado, o projéctil perdeu altura. Mergulhou no solo, emitindo um ruído metálico...três vezes.

Tinha acabado de morrer.